A “golden share” da Portugal Telecom (PT), apesar de constar nos Estatutos da empresa, não emergiu de uma decisão dos accionistas, mas sim de um decreto-lei, logo, trata-se de uma imposição político-jurídica nascida com as privatizações e fora da esfera da Sociedade Comercial (círculo de accionistas). É por isso, independentemente do seu mérito e importância para o país, uma ingerência do Estado no direito dos privados, quando na verdade a ideia da privatização é separar o público do privado, procurando uma gestão mais eficiente, o que realmente acaba por não acontecer, tendo em conta que as decisões que dizem respeito à empresa, como se viu no caso da PT, são, em última instância, sempre do Estado. Ou seja, o Estado, como alguém escreveu num artigo académico, “vai comer todo o bolo da privatização, deixando apenas o buraco”.
O que é isto de o Estado “comer todo o bolo da privatização e deixar apenas o buraco”?
Significa que o Estado faz o encaixe financeiro com a privatização (portanto, à custa dos investidores privados), descartando-se do ónus que decorre do exercício da actividade económica da empresa (transferindo esse ónus para os accionistas privados), mas é quem continua a mandar, pôr e dispor na empresa (esvaziando o poder de quem efectivamente pagou por ela - os accionistas). É desta forma que o Estado come o bolo todo da privatização, não deixando nada, com excepção do buraco vazio no centro do bolo, feito pela forma, que no caso é o ónus que transporta qualquer exercício de uma actividade económica e que o Estado alegremente coloca nas mãos dos accionistas privados. Mas veremos à frente que esta atitude esconde uma fricção, um risco pouco perceptível… Um verdadeiro “black swan“(1).
Hastear a bandeira da “golden share” é convidar o inimigo a deitar-se connosco.
As “golden shares“ são normalmente usadas no sentido de permitir ao Estado vetar alterações do negócio e decisões de gestão, independentemente do capital social detido; veto esse, muitas vezes, em detrimento do interesse dos accionistas e até da própria empresa e, alegadamente, em beneficio de um interesse público e/ou de segurança nacional. Nesses casos excepcionais, que envolvem a necessidade inequívoca de defender a soberania do país, o interesse público e a segurança social, há espaço para acomodar a figura, a interferência e o proteccionismo do Estado, como aliás tem sido, algumas vezes, o entendimento da Comissão Europeia.
Importa até sublinhar que, indo contra ao que a maioria das pessoas pensa, as “golden shares” (ou outro tipo de instrumentos que coloca a maioria dos direitos de voto nas mãos do Estado), não afecta negativamente o valor da empresa, porque não há nenhum valor de desconto associado a uma maior presença do Estado nas empresas privadas, pelo contrário, existe uma tendência positiva generalizada e significativa associada a empresas privadas mas com forte presença e controlo do Estado como concluíram Sinisfalco e Faccio no seu paper “Reluctant Privatization“, 9/2006, pág. 7.
No entanto, esses resultados (benefícios) não contemplam a hipótese deste instrumento especial que é a “golden share”, se vergar ao interesse político-partidário, a interferências politicas e muito menos a paternalismos, orgulhos, vaidades ou demonstrações gratuitas de poder, que, como se tem assistido, existem, passando as “golden shares” a servir um fim menos nobre do que o alegadamente defendido. Mais grave e presente está esse perigo, quanto maior for a incerteza da sua utilização devido à falta de uma orientação clara, por lei ou pelos Estatutos da empresa, relativamente às condições, critérios e circunstâncias em que este instrumento pode ser usado, deixando espaço aberto para interferências anacrónicas, arbitrárias e discricionárias do poder político no funcionamento das sociedades comerciais.
O valor intrínseco da “golden share” é positivo, pois numa óptica empresarial, financeira e económica, este instrumento pode até traduzir-se em benefícios para a empresa (por exemplo ao nível do rating, da preferência, da estabilidade societária, etc). Errado, incorrecto, injusto, péssimo e a verdadeira bomba atómica, não é o instrumento em si, mas o uso que se lhe dá, assim como um género de energia nuclear, útil quando bem usada, destruidora nas mãos erradas.
Esse erro, de grande prejuízo, no uso das “golden shares” por motivos diferentes da sua verdadeira essência e mérito, está associado à decisão (dos privados) de investir. Pois, geralmente, cada decisão de investimento assenta na confiança jurídico-económica que o acto proporciona.
O investidor só aceita o risco de investir de acordo com a justa recompensa pela incerteza de retorno. Nesse quadro, a ingerência do Estado a um nível que era pouco provável (ou até mesmo excluído), como aconteceu na PT, altera por completo a percepção, controlo e probabilidade de ocorrência desses riscos, o que significa que o risco aumenta, levando os investidores a exigirem um prémio maior pela sua assumpção, o que eleva o custo do capital alheio (da dívida da empresa a terceiros) e do capital próprio (o dinheiro dos accionistas), descontando e diminuindo (pelo custo do dinheiro/prémio de risco) os seus cash flows futuros, tornando a empresa mais cara apesar de tender para um valor inferior, ficando menos apetecível ao investimento privado, o qual a economia, indiscutivelmente, necessita, com a agravante de contagiar as restantes empresas.
Assim, nota-se que, ao contrário da crença popular, que alinha pelo pensamento ideológico de que as “golden shares”, enquanto instrumento de Estado, servem um interesse maior, ao impedir decisões que, alegadamente, contrariam o interesse público ou a segurança nacional, sobrepondo-se às decisões que caberiam aos accionistas, a verdade é que as “golden shares” aumentam os riscos de má gestão, de más decisões e mesmo de bloqueio à concorrência, contrárias ao interesse nacional. Isto porque o Estado tem mostrado uma tendência a comportar-se como os privados, intervindo nas decisões que dizem respeito aos mercados, criando nos seus intervenientes, em particular nos accionistas e na gestão, a ideia de que são parceiros de negócio com o Estado, resultando num género de moral hazard, onde o comportamento da gestão e dos accionistas acaba por ser contrário ao que seria de esperar na defesa dos interesses da empresa e na assumpção de riscos, uma vez que se sentem desresponsabilizados e cobertos pela intervenção do Estado em caso de problemas. Nestes termos, as “golden shares”, são quase como um seguro de cobertura de risco a favor da gestão e dos accionistas, que permite que estes possam aumentar o risco e deixar de ser tão diligentes como seria de esperar, já que em caso de alguma coisa correr mal, espera-se que seja o Estado, com interesse vital na empresa, o (último e superior) responsável por pagar a “factura”, como aliás, Sinisfalco e Faccio concluíram, ao constatarem que 14.29% das empresas (em estados membros da OCDE) privatizadas e ainda sobre o controlo do Estado, tiveram um “bail out” governamental, contra apenas 6.52% de outras empresas privatizadas completamente (sem presença do Estado).
Resumindo, o papel da “golden share”, ao nível interno (nacional) é inverso àquele que seria de esperar da sua essência, pois por um lado beneficia o tal “grande capital”, com os benefícios que advém de ter um Estado como parceiro na sua estrutura accionista (melhor rating, preferência na adjudicação de contratos públicos, entraves à entrada da concorrência, etc), e por outro prejudica o interesse nacional ao aumentar o risco do Estado (que em última análise suportaria o “bail out”) e afecta negativamente as condições de concorrência.
Pelo que quase se pode dizer, que o hastear a bandeira da “golden share” é convidar o inimigo do interesse público, dos contribuintes e da nação, a deitar-se connosco.
(1) Um evento desproporcional, com alto impacto, raro e difícil de prever por estar para além das normais expectativas e da sua probabilidade baixa de ocorrer, que por isso origina enviesamentos na sua percepção, capazes de cegar os intervenientes/utentes para o seu alto poder destruidor e incerteza; mas evento esse que depois de ocorrer parece mais previsível do que inicialmente era de supor.
Por: Octávio Viana, Presidente da Direcção da ATM, licenciado em Gestão de Empresas e Finanças, doutorando em Gestão de Empresas