O mundo mudou.
Não é segredo para ninguém que o eixo do poder económico se redireciona para a Ásia. O fenómeno da emergência económica da China, da Índia e de outros países periféricos é responsável pelo surgimento de uma nova realidade e pela possibilidade de percepção de outras questões que afloraram mais visíveis.
A China promove um crescimento económico apoiado em sua vertente inicial no baixíssimo custo da mão-de-obra, refletindo no momento presente, as condições de trabalho do século XIX. Contudo, mesmo que a China continue criticada pelo Ocidente por sua falta de liberdade e de democracia, tomou iniciativas elogiáveis como a de promover a absorção de conhecimento possível de quem transferiu sua produção para lá. Além disso, os governos dos países mais desenvolvidos sucumbiram na gestão do futuro de suas sociedades.
A base para esta última afirmação está no fato do capital ter se apoderado do sistema político. Assim, o Estado deixou de privilegiar ao maior contingente de indivíduos da sociedade e passou a só privilegiar o capital. Dessa forma, ao invés de servir para diminuir as diferenças entre os mais favorecidos e os menos favorecidos, serviu para catalisar essas diferenças ao ponto em que vemos hoje, nos países em nível mais elevado de desenvolvimento.
A concentração de riqueza; a completa falta de esperança das classes médias pelo mundo; a deterioração do valor do trabalho; a falência do Estado como regulador do sistema financeiro; e a derrocada dos valores centrais das sociedades se encontram espelhados na fragilidade dos atuais mandatários com poder global.
A gota d´água desse processo, que fez transbordar a movimentação geopolítica do poder, foi a admissão da China como economia de mercado. Ao assim tratar a China, os poderosos mandatários das potências globais inviabilizaram a possibilidade de sua produção interna ter preços concorrentes com os dos produtos chineses, mesmo em seus mercados internos. E porque isso é importante? Porque as classes médias, e em média, a população, empobreceram e começaram a desenvolver seu processo de compra com base no preço e não na qualidade. Contudo, para o capital, a admissão da China como membro da Organização Mundial de Comércio representou a possibilidade de serem conseguidos grandes retornos a partir dos investimentos produtivos que foram deslocados para lá.
Aqui se evidenciou o primeiro exercício do poder do capital sobre o poder político. Ao capital interessava viabilizar seus extraordinários lucros gerados pela deslocação da produção. Para os cidadãos comuns representava a deterioração de sua fonte de geração de riqueza e a desindustrialização que hoje vemos em diversos lugares do planeta. Não que o desenvolvimento de serviços em substituição a produção industrial seja tão problemática para o crescimento do PIB de alguns países. Contudo, na área de serviços, muitos destes também foram tomados pelos indianos. Assim, se o fenómeno China está atrelado à desindustrialização, o fenómeno Índia está vinculado a transferências de serviços para a Ásia. O custo de prestar serviços ou de se fabricar na Ásia é o ponto central dessa deslocação.
Outra consequência desse deslocamento é que o trabalho tem uma irreversível tendência declinante na formação de riqueza na sociedade atual e futura. A classe média estava certa, no suicídio coletivo que comete nos últimos anos em várias partes do planeta. Nesse sentido, muitos países têm tido problemas de crescimento de sua população e são suportados pelo fluxo de imigrantes de países com piores perspectivas de vida. Mesmo países emergentes com algum destaque no cenário mundial possuem taxas de crescimento vegetativo abaixo de 2,3% que representa o nível mínimo para manutenção da população nos níveis atuais.
Esse fato é vital para a concentração de renda. Os membros da classe média ou conseguirão emergir para a elite, ou cairão paulatinamente de padrão de vida. Essa realidade foi percebida há algum tempo pelas elites governantes, e o remédio para essa situação foi a tentativa de criação de um mercado interno mais robusto, e que sustentasse o crescimento do seu produto contrabalançando em posição contrária, os inevitáveis déficits nas contas correntes gerados pelo desequilíbrio competitivo com os emergentes.
Contudo, a construção dessa classe média emergente nos países com grau de potências globais, não foi sedimentada com base na melhoria das condições de competitividade de sua economia, ou na melhoria da qualificação de seus profissionais ou em inovação, ou ganhos de escala via tecnologia ou melhoria dos processos. Boa parte do crescimento desses mercados internos se deu por conta da disponibilização de crédito. Esse painel de fundo permitiu a crise dos países mais desenvolvidos e permitiu a alavancagem, sem medida, das famílias, dos Estados e das empresas.
Se tais mercados tivessem se tornado robustos e sustentáveis, existiria demanda para produtos de maior qualidade, mas o processo fracassou. Em finanças aprendemos que todo o endividamento só é possível até o credor acreditar que somos capazes de pagar os custos desse endividamento e que não apresentamos risco elevado de insolvência.
Junto a esse processo de alavancagem, ocorria um processo de diminuição do poder regulatório nos mercados financeiros e de capitais, outro prisma da ação do capital sobre o poder político. Desde a quebra do princípio da divisão de especialidades no mercado financeiro e de capitais, sob a argumentação de que os grandes conglomerados (bancos múltiplos) poderiam ter ganhos de escala e de escopo, e com isso teriam menores custos em suas operações, o que possibilitaria ganhos de produtividade para o sistema produtivo, que se verificou a criação de instituições que estão acima do poder de fiscalização e regulação, e que são grandes demais para poderem quebrar.
Aliado a isso, o crescimento dos mercados futuros e a interligação dos mercados financeiros possibilitou ainda que o mercado financeiro tirasse vantagem dos desequilíbrios existentes em diversas economias importantes do planeta. As operações de carry-trade originados de captação de recursos em economias com baixas taxas de juros, para aplicação em mercados financeiros emergentes; os deficits gémeos norte-americanos; o incentivo ao consumo e depreciação da poupança em diversos países desenvolvidos; as políticas monetárias com taxas de juros baseadas somente no controle da inflação em um momento de choque de oferta provocado pela China; e a construção de um sonho dourado das classes médias emergentes nas potências globais, construíram o cenário que antecedeu à quebra sistémica verificada em 2008.
Assim, o Estado ou as organizações internacionais catalisaram o processo de mudança económica que hoje vemos.
Não existe possibilidade de retorno de empresas produtivas para as potências desenvolvidas pois os custos diretos e indiretos do trabalho não o permitem, porque a China já possui ganhos de escala e escopo e preços irreversivelmente menores que os possíveis de serem obtidos pelos países desenvolvidos. Portanto, mesmo com a aposta no crescimento de seu mercado interno, com base no recrudescimento da renda e do poder aquisitivo de sua população, a China não deverá ter problemas na manutenção de seu status de pólo industrial do mundo. Ao contrário, é possível sim, que a China exporte a inflação derivada do crescimento de seu mercado interno para os países desenvolvidos.
Assim, se só restam para as potências a possibilidade de virem a competir no mercado de consumo, em serviços e produtos com melhor qualidade e valor agregado com baixo preço. Contudo, um problema inicial é que o seu mercado interno de produtos diferenciados diminui porque a renda se concentrou. Por isso, nem o investimento privado, nem o consumo privado responderam presente quando os incentivos públicos deixaram de ser exercidos.
Alie-se a isso o desperdício em termos de produtividade dos gastos dos Estados para salvarem o sistema financeiro do colapso, revestido das condições já conhecidas de moral hazard. Isto também ocorreu porque o sistema financeiro é a interface entre o capital e o poder político e não poderia ser penalizado sem que o poder político também entrasse em colapso.
Sendo inevitável a mudança desse pano de fundo, o que fizeram os Bancos Centrais dos países desenvolvidos e os Estados com característica de potências globais? Executaram as políticas conhecidas para a tentativa de estabilização da economia global. Por um lado a Europa sob a liderança alemã promoveu uma política de austeridade com diminuição dos gastos e controle das dívidas dos Estados membros da Zona do Euro.
Ora, se a Alemanha foi beneficiada com a criação do mercado do Euro, onde exportou sua produção e ampliou seus mercados, seria de se esperar que também estivesse á frente do processo de consolidação do projeto “Europa”. Em um mercado onde existe uma moeda e uma taxa de juros comum a todos, sem restrições tributárias e alfandegárias, por certo que os países em estágios inferiores de desenvolvimento teriam que acumular dívidas e perder a competição no longo prazo para os que são mais eficientes.
Não que suas populações ou espírito público fosse o de objetivarem ser perdulários, mas era questão de tempo que o produtor mais qualificado tomasse os mercados. Só resta à Europa permitir que os Estados com problemas saiam do Euro e reconstruam suas economias fora do Euro, ou que se consolide o projeto Europa, com consolidação da dívida, dos controles sobre os orçamentos e execução das despesas e controles sobre tetos de endividamento muito bem consolidados e blindados à volúpia dos políticos.
Porém, parece que não será fácil se consolidar o projeto Europa, pelo menos neste momento. Por outro lado, deixar um país sair é um exemplo de que o projeto é excludente e somente está propenso aos momentos onde possam existir retribuições adequadas entre as partes.
A emissão de Eurobonds também não soluciona a questão, especialmente se estes estiverem ligados às emissões de capitalização dos países em dificuldades financeiras. Os Eurobonds seriam solução se houvesse a conversão dos estoques de dívida dos países em títulos europeus, o que somente se entende justo, caso existisse todo um poder coercitivo que evitasse o sobre endividamento dos Estados em menor estágio de desenvolvimento. Destaque-se que a Zona Euro já possui, em 2010, uma razão de 85% de dívida soberana em relação ao seu PIB.
Do outro lado do Atlântico, os EUA implementam uma política de tentar exportar seus problemas utilizando sua moeda como instrumento para tentar continuar a conduzir uma politica fiscal e monetária que já trazem consequências muito perversas para todo o mundo.
Não há como não fugir, no primeiro momento, para os Treasuries Bonds como porto para aplicar os trilhões de dólares existentes no mercado financeiro. Porém, a cada dia que o risco se amplia, pela inércia dos governantes em mostrar por meio de ações, que o futuro já não pode ser tão cor-de-rosa como o fizeram crer antigamente, mesmo nas potências globais mais importantes.
A guerra cambial destrói a referência nas moedas como ativos com reserva de valor. Também parece ironia se dizer que vários países se encontram em expansão económica, quando na verdade seus produtos internos crescem abaixo da inflação existente. Em outras palavras, não se pode falar em crescimento económico quando se observa um processo de empobrecimento real no nível micro ao nível macro-econômicas nas nações desenvolvidas.
Alguns emergentes estão adotando políticas voltadas para o aumento de seu mercado interno, como forma de se protegerem do declínio do crescimento mundial. Além de claros problemas de inflação e da existência de bolhas imobiliárias e de crédito, da mesma forma como os países desenvolvidos fizeram nos anos anteriores da crise, a base do crescimento de seu mercado interno está alicerçada na emissão de dívida corporativa ou estatal ou na extrapolação do crédito.
É nesse contexto, em que parece inevitável que a recessão, em sua segunda fase, visite o mundo contemporâneo e provoque mais volatilidade nos mercados de dívidas, a corrosão do valor dos ativos de risco e jogue o mundo em um novo processo de turbulência económica e financeira, que estamos entrando. Porém, nesta oportunidade os Estados não terão munição para salvarem bancos e tentarem promover políticas anti-cíclicas.
A questão que se coloca mais relevante nesse momento é: “Será que ainda não aprendemos o bastante sobre alavancagem financeira, limites de endividamento e os problemas derivados dessa mágica forma de sustentar o que não é sustentável a longo prazo, ou teremos que nos deparar com novos exemplos e um maior volume de problemas no futuro?”
Valdir Lameira – investigador científico e professor, membro do conselho consultivo da ATM
Rui Ferreira – engenheiro, mestre em geofísica e investidor